Como a parceria entre a Embraer e o criador da companhia Azul pode transformar a aviação brasileira
Marcos Todeschini – veja
Uma nova parceria pode mudar o cenário da aviação brasileira. De um lado está o empresário David Neeleman, 48 anos, fundador da JetBlue, uma das maiores companhias aéreas de baixo custo nos Estados Unidos. Do outro, a brasileira Embraer, terceira maior fabricante de jatos do mundo.
O que os une é um negócio de 2,5 bilhões de reais, quantia que Neeleman vai pagar por 36 aeronaves da Embraer. Em seis meses, os primeiros aviões dessa encomenda começam a voar no Brasil pela Azul, a nova empresa de Neeleman. O valor da transação, por si só, já chamaria atenção, mas são algumas particularidades do negócio que o tornam tão relevante para as duas partes – além de ser inédito no país. Será a primeira vez que os jatos da Embraer, cujos maiores mercados estão nos Estados Unidos e na Europa, voarão no Brasil. Será também o desbravamento de rotas até agora inexploradas.
O plano de Neeleman é oferecer – "a preços de uma passagem de ônibus" – vôos diretos entre grandes cidades às quais só se chega hoje de avião depois de muita escala. A parceria é fundamental para ambos.
Resume Neeleman: "Sem os jatos da Embraer, meu negócio seria inviável. Eles vão permitir cortar custos". Para a Embraer, é uma chance de ganhar mercado num momento em que a empresa perde terreno para sua principal concorrente, a canadense Bombardier. "Ganhamos uma vitrine no Brasil", diz Frederico Curado, presidente da Embraer.
Alguns números sobre o mercado de aviação brasileiro foram determinantes para a decisão de Neeleman de investir no país. Um deles diz respeito ao déficit de vôos entre grandes cidades, como Salvador e Belo Horizonte. Hoje, 80% das viagens aéreas se concentram em somente dez capitais brasileiras, enquanto sessenta grandes cidades contam com um único vôo diário – que sempre tem São Paulo ou Brasília numa das pontas. Essa carência de vôos se acentua com o aumento do número de usuários: ele hoje é o dobro do de quatro anos atrás. São 10 milhões os brasileiros que viajam de avião.
As planilhas de Neeleman sugerem que 45 milhões de pessoas que utilizam regularmente o ônibus para cobrir grandes distâncias podem ser eventualmente incorporadas à clientela da aviação. Um indicador de que os cálculos de Neeleman têm um bom embasamento está no fato de que dois de seus concorrentes na aviação de baixo custo também manifestam, em público, interesse pelo Brasil: o irlandês Michael O’Leary, dono da Ryanair, e o inglês Richard Branson, da Virgin Atlantic (mas nenhum dos dois traçou planos mais concretos até agora). "Entre os países emergentes, o Brasil é aquele em que a aviação tem o maior potencial para crescer", diz o consultor Paulo Bittencourt.
A experiência mostra, no entanto, que não é tão fácil prosperar na aviação brasileira, especialmente nas rotas que estão na mira de Neeleman. A tentativa recente de duas novatas trouxe à luz uma dificuldade básica: não é tão simples atrair para os aviões pessoas que não têm o hábito de voar – ainda que já possuam dinheiro para pagar pela passagem e disponham de tarifas baixas. A BRA, que fechou as portas há oito meses, chegou a vender passagens até 70% mais baratas. As margens de lucro da empresa encolheram, mas os aviões não lotaram. Apenas metade dos assentos ficava ocupada, 10% menos do que o mínimo necessário para um vôo se tornar rentável. Algo parecido ocorreu com a OceanAir. Em 2002, ao inaugurar seus vôos, a empresa ambicionava 15% do mercado brasileiro. Hoje, patina em 4%. "Foi um processo doloroso, em que tivemos de abandonar as rotas menos rentáveis", conta German Efromovich, dono da Ocean-Air. Ambas fizeram uma aposta parecida com a da Azul: chegar a lugares hoje desguarnecidos de vôos. Até a década de 90, o governo incentivava as empresas a operar em tais cidades por meio de subsídios. Quando a fonte oficial secou, as companhias maiores deixaram as rotas. Naquele tempo, os aviões voavam para 280 municípios brasileiros. Hoje vão a apenas 150.
A diferença fundamental do projeto de Neeleman para os que já fracassaram está, basicamente, no uso dos jatos da Embraer. Antes de tudo porque, sendo mais leves, eles consomem 20% menos combustível – uma economia-chave, já que o petróleo representa o maior de todos os gastos envolvidos no negócio. A situação piorou ainda mais com a alta acelerada do barril, hoje valendo 125 dólares, o dobro do que no ano passado. O combustível passou a responder por 40% dos custos do vôo, cenário para o qual as empresas não estavam preparadas. Antes, elas costumavam fazer encomendas antecipadas para se proteger de uma eventual alta do petróleo. De dois anos para cá, justamente quando o preço do barril começou a subir, decidiram comprar menos combustível de uma só vez.
Pensavam que os preços logo voltariam ao antigo patamar – o que não aconteceu. Nos últimos seis meses, quarenta companhias de baixo custo anunciaram falência nos Estados Unidos e na Europa. Até as gigantes se viram obrigadas a adotar medidas para reduzir os estragos: a American Airlines começou a cobrar pelo despacho de malas e a Northwest – pasmem – passou a abastecer os banheiros dos aviões com 25% menos água.
É nesse contexto que a economia de combustível proporcionada pelo avião da Embraer se torna vital para o negócio da Azul. Ela se deve a um conjunto de tecnologias e ainda ao tamanho do jato, de 118 lugares. Menor do que a média, ele é também mais adequado à demanda das cidades em que a nova empresa pretende operar. A Embraer decidiu investir 1 bilhão de dólares na fabricação de jatos maiores do que aqueles que costumava produzir, com no máximo 50 lugares, motivada pela brecha que se abriu no mercado com a falência da holandesa Fokker e o fim da produção comercial da sueca Saab. Eram empresas especializadas em aviões de porte médio para vôos regionais.
Também depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, o número de passageiros despencou no mundo inteiro, e as companhias precisaram cortar custos. Uma das medidas adotadas por muitas delas foi substituir uma grande frota de pequenos jatos por uma frota menor de aviões médios, reduzindo concomitantemente o número de vôos. Com a alta do petróleo, esse tipo de avião passou a ser ainda mais requisitado. "Foi o momento certo de investir nos novos jatos", conclui Mauro Kern, vice-presidente da Embraer. A empresa sempre apostou em aviões menores porque a concorrência era menos acirrada.
Prosperou na Europa e nos Estados Unidos, onde a aviação regional é consolidada. No Brasil, ela nunca foi adiante.
A experiência de David Neeleman na aviação de baixo custo pode ajudar. Entre admiradores e desafetos, ninguém questiona sua capacidade de levar a idéia de um vôo econômico às últimas conseqüências. Ele já colocava em prática parte dessa cartilha na Morris Air, empresa de baixo custo que fundou em 1992. Passou o negócio adiante para a gigante Southwest e, aos 40 anos, abriu a JetBlue, onde, aí sim, fez fama de pão-duro. Para enxugar o quadro de funcionários, criou o bilhete aéreo emitido pela internet e um sistema de call center terceirizado, no qual as atendentes eram senhoras que faziam o trabalho de casa. Ainda racionou o lanche e passou a operar em aeroportos pequenos. Os vôos passaram a custar cerca de 40% menos, fórmula que Neeleman traz agora ao Brasil. Será a primeira nesses moldes no país. A que mais se aproximou disso foi a Gol. Antes de inaugurar vôos, o empresário Constantino Junior fez até um estágio na sede da JetBlue, em Nova York. Copiou a idéia do bilhete eletrônico e, no princípio, ofereceu passagens a preços mais baixos. Durou pouco. Só no ano passado, as tarifas da Gol subiram 67%. Diz Neeleman: "No Brasil, a lógica é a do baixo custo para as empresas e do alto custo para os passageiros".
Poucos empresários da aviação têm tanta facilidade em atrair investidores – ainda que este não seja exatamente o melhor momento profissional de Neeleman. No ano passado, ele foi pressionado a deixar o comando da própria empresa depois de dois anos consecutivos de prejuízos. Ficou com apenas 10% das ações. Mesmo assim, juntou 300 milhões de reais em seis meses para abrir a Azul, dinheiro que veio, entre outros, da Gávea Investimentos (de Armínio Fraga) e do megainvestidor George Soros. Agora vai precisar se adaptar a certas peculiaridades do mercado brasileiro. Enquanto nos Estados Unidos existem sessenta companhias aéreas, no Brasil apenas duas delas, TAM e Gol, detêm 90% do mercado. Sem concorrência, elas atingem margens de lucro de 8%, quatro vezes mais do que a média do setor no mundo inteiro. Juntas, somam 230 aviões. A Azul começará em janeiro com apenas três. Diz o consultor Respicio do Espírito Santo: "Para neutralizar a nova empresa, a tendência é que TAM e Gol passem a operar nas mesmas rotas, mesmo que tenham prejuízo".
Outra novidade para Neeleman será fazer negócio num país em que o setor de aviação passa por turbulências – não apenas econômicas, mas do ponto de vista da infra-estrutura e do marco regulatório. No ano passado, as companhias foram obrigadas a mudar suas rotas três vezes. Em meio ao caos aéreo, era uma tentativa de desafogar aeroportos congestionados. O governo também restringe a 20% o capital estrangeiro em companhias de aviação. Neeleman, que passou a vida nos Estados Unidos e é filho de pais americanos, só conseguiu abrir uma empresa no Brasil por um fato curioso de sua biografia. Na década de 50, o pai veio ao Brasil como missionário mórmon e ele nasceu em São Paulo, onde ficou até os 7 anos. Voltou ao país apenas aos 18, também como missionário, ocasião em que cruzou quase todos os estados nordestinos pregando a Bíblia. Casado e pai de nove filhos, ele costuma citar o Velho Testamento para platéias de empresários, embora tenha lido apenas trechos dele.
Com diagnóstico de déficit de atenção – síndrome na qual a pessoa não consegue se concentrar no mesmo assunto por muito tempo –, Neeleman jamais chegou ao fim de um livro. "Mas os médicos dizem que tenho criatividade em excesso – e pretendo usar isso a meu favor no Brasil." Será preciso.