Passageiros atarantados nos aeroportos, passagens caras, acidentes constantes. É possível dizer que a aviação brasileira está melhor?


Celso Masson e Andres Vera

Com Murilo Ramos

Nos últimos dois anos, a aviação civil brasileira passou por mudanças bruscas de rota. Dois acidentes aéreos em um curto espaço de tempo colocaram o país no nada invejável topo do ranking mundial em número de vítimas. Com filas imensas nos aeroportos e atrasos acima de 50% nas decolagens, a recém-criada Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) perdeu credibilidade. Sua cúpula foi destituída em meio a denúncias de incompetência e corrupção. Também foram substituídos o ministro da Defesa e o presidente da Infraero, a estatal que cuida da manutenção dos principais aeroportos do país. Com tantas mudanças, era de esperar que parte do caos fosse resolvida. Na semana passada, a queda de um avião Bandeirante com 28 pessoas a bordo, num afluente do Rio Solimões, no Amazonas, evidenciou alguns dos graves problemas que a aviação brasileira ainda enfrenta. O que é necessário para acertar o rumo?

O Bandeirante, projetado para levar 19 passageiros e dois tripulantes, estava superlotado. Como sua decolagem pôde ser autorizada? Dois dias depois do acidente, a Anac anunciou que faria uma inspeção na Manaus Aerotáxi, empresa que havia fretado o avião. Segundo a Anac, durante a fiscalização anterior, feita em outubro, não foi encontrada nenhuma irregularidade nas seis aeronaves da empresa. Mas os relatos de sobreviventes – quatro pessoas deixaram o avião com vida – descrevem uma situação de aparente falha mecânica. Dos 24 mortos, 18 eram de uma mesma família. Sete crianças morreram.

Acidentes aéreos acontecem. Segundo o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), em 2008, 57 pessoas morreram em 24 acidentes aéreos no Brasil (houve outros 79 acidentes sem mortes). O número é bem menor que o dos dois anos anteriores. Em 2006, quando houve a colisão de um Boeing da Gol com um jato Legacy, o Cenipa registrou 215 vítimas. Em 2007, com a queda do Airbus da TAM, a maior tragédia da história da aviação brasileira, o total de mortes subiu para 270. Parece insignificante, se comparado às cerca de 36 mil mortes que o trânsito brasileiro provoca por ano ou aos 112 milhões de passageiros que, segundo a Infraero, embarcaram e desembarcaram nos aeroportos brasileiros no ano passado, em voos domésticos (99 milhões) e internacionais (13 milhões). Mas acidentes são o resultado de uma combinação de fatores, e prevenir que eles concorram para uma tragédia é obrigação dos órgãos públicos que controlam a aviação e das companhias que operam linhas aéreas.

Pelas evidências que se tem até agora, o acidente da semana passada permite suspeitar de que essas obrigações não foram inteiramente cumpridas. Na Amazônia, voar ainda envolve um grau de risco elevado.

O Bandeirante da Manaus Aerotáxi caiu a menos de 20 minutos do local onde deveria ter pousado. Sem mencionar nenhum problema técnico, o piloto César Grieger avisara à torre de controle que voltaria para Coari, seu ponto de partida. Chovia forte. Minutos depois do comunicado, Grieger tentou um pouso forçado na água, a 500 metros da cabeceira de uma pista de pouso abandonada. “A hélice parou, e, daí em diante, o avião só perdeu altitude até o impacto na água”, disse a passageira Ana Lúcia Laurea, de 43 anos, uma das quatro sobreviventes. Com o choque da queda, as poltronas do avião se deslocaram para a frente, prendendo os passageiros e dificultando a saída por uma porta de emergência na parte traseira. O avião afundou no Rio Manacapuru, a uma profundidade de 6 metros.

Das 18 pessoas da família que viajava para comemorar o aniversário do empresário amazonense Omar Melo Júnior, apenas duas sobreviveram: Erick da Costa, de 23 anos, e seu irmão Yan Liberal, de 9 anos. Yan escapou porque estava sentado no colo do irmão, que conseguiu levá-lo até a porta de emergência. Outra sobrevivente, Brenda Moraes, de 21 anos, contou que os passageiros não foram avisados sobre o problema, mas que era possível perceber a agitação do piloto. Na queda, Brenda perdeu os sentidos. “Quando acordei, a água já estava na minha cintura. E foi só o tempo de tirar o cinto. Eu não conseguia enxergar nada, mas fui guiada para abrir a porta.” Ela agarrou-se a um pedaço do avião que boiava. Cinco minutos depois, pescadores da região chegaram ao local para ajudar no resgate dos sobreviventes.

O primeiro laudo sobre as causas do acidente com o Bandeirante deve ficar pronto em dez dias. Mas as conclusões definitivas poderão demorar até um ano. Como o Bandeirante não tem caixapreta, o Cenipa vai analisar componentes da aeronave e o registro de voz dos pilotos.

A Aeronáutica trabalha com uma hipótese: o avião teria sofrido uma pane numa das turbinas e, devido ao excesso de peso, perdeu sustentação e caiu, afundando rapidamente. “Os ocupantes tiveram vários traumas leves com a queda, mas a principal causa das mortes foi afogamento”, diz José Onete, diretor do Instituto Médico Legal de Manaus. “Eles não tiveram tempo de sair do avião.” A Aeronáutica também investiga se o avião voava com querosene adulterado.

O empresário Omar Melo acusa a Manaus Aerotáxi de ter vendido cinco passagens extras para o voo que levaria sua família a Manaus. Ele pretende processar a empresa. A sobrevivente Ana Lúcia Laurea disse que não voou de carona – sua passagem teria sido comprada pela Prefeitura de Coari. “É comum companhias de táxi aéreo funcionarem como companhias regulares para vender passagens extras”, disse Camilo Barros, presidente da Associação da Região Norte de Parentes e Vítimas de Acidentes Aéreos.

A Manaus Aerotáxi admite que havia mais passageiros a bordo do que o limite estipulado pelo fabricante. Mas se defende, afirmando que o peso das crianças de colo não seria suficiente para exceder os 5,7 toneladas que o Bandeirante pode transportar. Havia, no entanto, crianças grandes viajando no colo de adultos, como o sobrevivente Yan, de 9 anos. “A Manaus Aerotáxi cobra um valor fechado pelo fretamento e não ganharia nada infringindo a segurança para colocar mais passageiros dentro do avião”, diz Paulo Roberto Pereira, porta-voz da empresa. A Anac permite um acréscimo de 30% de passageiros, desde que sejam crianças com no máximo 2 anos de idade. O sobrepeso pode não ter derrubado o avião, mas pode ter dificultado o pouso forçado após a pane em um dos motores.

O presidente do Sindicato dos Aeroviários do Amazonas, Jorge Negreiros, afirma que se reuniu em outubro com o piloto César Grieger e outros quatro comandantes para ouvir reclamações sobre as condições de manutenção da Manaus Aerotáxi. “Os pilotos acabam aceitando as regras do jogo e colocando mais pessoas no avião para não desagradar à empresa e não perder o emprego”, diz Negreiros. O Sindicato dos Aeroviários do Amazonas registra uma média mensal de dez denúncias contra as companhias aéreas. Metade delas se refere a questões de segurança. Falta de fiscalização, pouca manutenção, excesso de carga e canibalização de peças estão entre os principais problemas.

Três dias depois do acidente com o avião da Manaus Aerotáxi, o diretor do Departamento Aeroportuário de Coari, Eufrázio Azevedo Filho, admitiu em uma entrevista que o aeroporto da cidade, administrado pela Prefeitura, não exercia nenhuma fiscalização sobre as aeronaves locais. O próprio aeroporto de Coari havia sido interditado por autoridades da Aeronáutica em 2006. “Aqui não adianta o piloto ou o empresário fazer tudo direito, porque você pode ter uma surpresa ruim quando pousar num aeroporto em condição precária”, disse a ÉPOCA um piloto de Manaus que pediu anonimato. Esse piloto perdeu a primeira mulher em um acidente aéreo.

“O principal objetivo da Agência Nacional de Aviação Civil é melhorar a segurança”, diz Marcelo Guaranys, diretor da Superintendência de Serviços Técnicos e Relacionamento com o Usuário da Anac. A segurança é a questão central da aviação e implica em investimento direto do Estado, que fiscaliza pilotos, aeronaves e companhias, além de controlar o tráfego aéreo. Por isso, é assustador o resultado preliminar do programa de fiscalização Decolagem Certa, criado pela Anac em abril de 2008.

Até janeiro deste ano, a Anac registrou 1.559 situações em que o piloto estava com habilitação irregular. A média é de cinco ocorrências por dia. O programa constatou que em 2.455 ocasiões as aeronaves fiscalizadas estavam com a Inspeção Anual de Manutenção vencida. Mesmo assim, apenas 256 autos de infração foram lavrados. Ainda que todos esses casos sejam restritos ao que se chama “aviação geral” (que inclui aviões executivos e os usados na agricultura), é alarmante. Afinal, os pilotos dessas aeronaves cruzam o mesmo espaço aéreo por onde circulam aviões de carreira, com centenas de passageiros a bordo. O acidente com o Boeing da Gol, em que 154 pessoas morreram, foi causado pela colisão, em plena rota, com um jato executivo que voava em sentido contrário, na mesma altitude.

“Todas as aeronaves e pilotos precisam ser fiscalizados”, diz Guaranys. Mas, como é impossível verificar pessoalmente cada aeronave antes da decolagem, isso é feito de forma estatística, a partir da análise de dados fornecidos pelos aeroportos.

Além da segurança, a aviação brasileira enfrenta a baixa qualidade dos serviços prestados aos passageiros. Não é uma exclusividade do Brasil. Atrasos e cancelamentos de voos decorrem da explosão da demanda pelo transporte aéreo no mundo inteiro. No Brasil, porém, o desrespeito para com o passageiro ganhou nome e sobrenome: “caos aéreo”.

Sua aparição se deu logo após o acidente com o avião da Gol, em 2006. Começou com um movimento dos controladores de voo, revoltados com as condições de trabalho a que eram submetidos, e agravou-se por conta do overbooking (a venda de passagens em número superior à capacidade dos aviões, na previsão de que parte dos passageiros não comparecerá ao embarque) praticado pela TAM na véspera do Natal – justamente quando os atrasos e cancelamentos bateram recordes. O caos voltou a atacar no fim do ano passado, daquela vez tendo como vilã a Gol. No dia 20 de dezembro de 2008, a empresa chegou a registrar 60% de atraso em seus voos – o triplo do considerado aceitável pela Anac.

Em nota, a Gol atribuiu os atrasos a problemas com o “sistema” da companhia nos dias 20 e 21 de dezembro. O mau tempo também teria prejudicado a pontualidade nos dias seguintes, segundo o comunicado da empresa. A Anac obrigou a Gol, então, a reforçar o atendimento aos passageiros nos horários de pico nos principais aeroportos do país. Mas o resultado não aliviou o transtorno para quem estava em terra. A porcentagem de voos atrasados nos aeroportos brasileiros em dezembro voltou a um patamar próximo do recorde anterior: 40%, contra 51% um ano antes. Em Brasília, a taxa foi ainda mais alta que em 2007, com 67% das partidas tendo saído com mais de 30 minutos de atraso. Apesar do esforço da Anac para reduzir os índices, a novela dos aeroportos teimava em manter os passageiros no chão.

Foi numa tentativa de evitar a permanência do caos aéreo que o presidente Lula nomeou Nelson Jobim para o Ministério da Defesa. Ele assumiu a pasta em meio a uma crise institucional do setor. Seu primeiro diagnóstico listou problemas que iam da falta de credibilidade da Anac à baixa concorrência entre as empresas, cujas tarifas eram mantidas altas por acordos e falta de competição. Como a gravidade da situação exigia atitudes enérgicas, Jobim foi enfático já no discurso de posse, em agosto de 2007:

“Aja ou saia, faça ou vá embora”, afirmou.

Na CPI do Apagão Aéreo no Senado, o ministro afirmou que, para atender às determinações de segurança nos voos, as empresas aéreas seriam obrigadas a levar menos passageiros, reduzindo o número de poltronas e aumentando o espaço entre elas. “Já determinei à Anac a recomposição desse ‘espaço vital’, de forma que se respeite o usuário, e não o interesse exclusivo da empresa.” Num esforço ainda maior para mostrar que estava do lado dos passageiros, ele anunciou que a Anac aplicaria multas pesadas para punir atrasos.

Hoje, o discurso é bem mais ameno. A assessoria do ministro afirma que uma primeira proposta de projeto de lei que proteja os passageiros dos abusos das empresas no quesito pontualidade está em análise pela Casa Civil, em conjunto com os órgãos de defesa do consumidor.

De acordo com o ex-presidente da Infraero Sérgio Gaudenzi, a situação da aviação brasileira é bem melhor que em 2006. “Não se veem mais passageiros pulando balcões para botar o dedo na cara dos atendentes das empresas aéreas”, diz Gaudenzi. “E os atrasos, apesar de existirem, estão em níveis muito mais civilizados.” O passo que ainda falta dar, segundo Gaudenzi, é criar mecanismos que permitam punir as empresas que desrespeitam o consumidor. “É preciso dar um tranco. É preciso ser mais enérgico. As empresas não podem fazer os passageiros esperar muito”, diz.

Um obstáculo à melhoria da qualidade do serviço prestado é o duopólio TAM-Gol. As duas grandes empresas que dominam o setor se acomodaram por não ter de se esforçar para atrair passageiros. Um exemplo: o passageiro que compra pela TAM um voo São Paulo-Miami-São Paulo paga US$ 1.118. Se esse mesmo passageiro comprar pela TAM um voo Miami-São Paulo-Miami, ele paga US$ 750. A diferença é de 49% para um voo com a mesma companhia, os mesmos serviços e a mesma distância.

Para mudar essa situação e permitir que o passageiro pague um preço justo pelo serviço oferecido, a Anac tem duas estratégias. A primeira é incentivar a competição, liberando o preço das passagens, tanto as internacionais quanto as domésticas. Hoje, no Brasil, as empresas têm garantido um preço mínimo.

Nem as companhias nacionais nem as estrangeiras podem oferecer passagens com grandes descontos. A medida visa coibir o dumping, a prática predatória de reduzir os preços para forçar os concorrentes a fechar as portas. As empresas aéreas estrangeiras estão ansiosas pela liberação, pois poderiam tomar parte do mercado da TAM, que voa para os Estados Unidos e a Europa. Na primeira tentativa de regulamentar a livre competição, a Anac perdeu a batalha na Justiça. Mas pretende voltar à carga e aprovar a medida dentro de dois meses. A liberação das tarifas pode provocar uma redução nos preços no curto prazo, mas analistas entendem que essa redução seria temporária, até que as empresas estrangeiras dominassem o mercado e reajustassem o valor das passagens.

A outra estratégia da Anac é fomentar a competição internamente, criando condições para que empresas hoje consideradas pequenas, como a OceanAir e a novata Azul, possam crescer. “A Azul se apresenta como uma empresa com grande potencial de crescimento no curto prazo”, diz Marcelo Guaranys, da Anac.

Enquanto o combate ao duopólio TAM-Gol está só começando, uma outra batalha ganha corpo nos bastidores da aviação: a possibilidade de abrir o capital da Infraero, a estatal que controla os aeroportos principais do país. Nos próximos dias, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) fará uma licitação para contratar a empresa de consultoria que será responsável pelo plano de reestruturação da Infraero. As primeiras avaliações da área técnica do BNDES concluíram que será necessário arrumar a casa antes de oferecer ações da estatal no mercado. Há ainda o temor de que a crise financeira espante os potenciais interessados em investir na empresa. Seja qual for o destino da Infraero, o Conselho Nacional de Desestatização já deu sinal verde para o processo de privatização de aeroportos.

Tornar a Infraero uma empresa privada traria, na visão dos defensores da ideia, recursos para modernizar e ampliar os aeroportos brasileiros. Esse pode ser um passo decisivo para acertar a rota da aviação civil brasileira. Enquanto isso não ocorre, algumas medidas simples, como as do quadro abaixo, poderiam ser adotadas para evitar acidentes como o da semana passada na Amazônia.

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