José Nêumanne

Foram execráveis, mas jamais surpreendentes, os gestos com que o professor Marco Aurélio Garcia e o jornalista Bruno Gaspar, assessores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, comemoraram no Palácio do Planalto a hipótese de a queda do Airbus da TAM em Congonhas ter sido causada por falha mecânica. A comemoração chula seria estúpida em qualquer ocasião. Mas foi ainda mais grave por ter ocorrido depois da morte de 200 pessoas num desastre. E porque culminou a insensatez galhofeira com que o primeiro escalão federal tratava antes o caos aéreo nacional e o descaso com que o chefe do governo lidava com o problema. A ministra do Turismo, Marta Suplicy, já se aproximara da obscenidade ao receitar o “relaxa e goza” aos passageiros angustiados com adiamentos e cancelamentos de vôos.

Seu colega da Fazenda, Guido Mantega, deixara clara a falta de seriedade da administração federal quando atribuiu a crise nos aeroportos a um aumento de demanda provocado pela prosperidade na economia. E o presidente da Infraero, brigadeiro José Carlos Pereira, cunhara o lema definitivo de sua gestão na aviação comercial brasileira ao constatar que, neste país, avião seguro só avião no solo.

Em matéria de sinceridade a toda prova, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva havia dado sua contribuição à candura impune com que ele e seu governo lidam com a administração de uma das 12 maiores economias do mundo, ao confessar que faz o que pode e deixa o resto como está para ver como é que fica. Essa confissão, feita algumas horas antes de o jato se espatifar na loja da TAM Express e no posto de gasolina autorizado a funcionar no outro lado da avenida para a qual dá o fim da principal pista de pousos e decolagens do aeroporto mais movimentado do País, foi levada à prática com empenho e zelo ao longo da crise. Cultor ele próprio de patacoadas, algumas vezes inócuas, Sua Excelência perdoou cada batatada de seus subordinados. Nenhum deles foi sequer admoestado publicamente pela chefia, ainda que todos tenham, pelo menos teoricamente, contribuído para desgastar a imagem do governo. Ou seja, desde o início ficou claro que o gesto grosseiro dos dois auxiliares do presidente, mesmo que só expressem o desprezo de ambos pela liberdade de expressão, que Garcia assumiria em nota oficial, terminou por simbolizar, de forma grotesca e brutal, o que a zelite dirigente faz com a sociedade indefesa. E a forma como esta sabe que é tratada pela “companheirada” no poder.

Se dúvidas havia quanto a isso, elas foram dirimidas, primeiro, pelo flagrante da descontração sorridente da cúpula da Infraero em São Paulo na hora da catástrofe e, depois, pelas reações oficiais nos dias posteriores ao flagrante do gesto chulo, que não foi uma manifestação privada, pois ocorreu num prédio público cuja denominação serve de metáfora para o poder máximo na República. O comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, associou-se aos colegas “aloprados”, contribuindo para a marcha geral da insensatez, ao condecorar três diretores da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), por seus préstimos à aviação nacional. Santos-Dumont, cujo aniversário foi festejado na data da entrega da medalha, teve sua memória conspurcada pelas condecorações para o militante petista Milton Zuanazzi, o presidente, a protegida de José Dirceu Denise Abreu e o aliado, do PMDB baiano, Leur Lomanto. No mesmo dia, o presidente da República prometeu à Nação dar mais força à Anac para resolver o problema, do qual a tragédia foi resultado.

Pois é. Luiz Inácio Lula da Silva ficou calado por 72 horas e convocou rede nacional de rádio e televisão para apresentar condolências aos familiares das vítimas; anunciar providências que só serão tomadas em dois meses; e cumprimentar os bombeiros paulistas, heróis da tragédia. Os pêsames foram dados com três dias de atraso; as providências deveriam ter sido tomadas dez meses atrás, quando caiu o jato da Gol na Amazônia; e os bombeiros teriam de ser cumprimentados pessoalmente, como faria o líder de uma democracia que se preze. É bastante discutível que as providências anunciadas dêem resultados positivos. Mas mais relevante é o fato de a Nação se ter sentido desamparada e órfã quando o presidente calou, e não ver motivo nenhum para haver achado amparo no pronunciamento.

Pois os gestos de Garcia e Gaspar não foram fortuitos, mas reveladores: expressaram a brutalidade pragmática que a cúpula federal aprendeu com seu líder máximo, o ditador georgiano Josef Stalin. Com base na filosofia de Karl Marx e na submissão às conveniências políticas do partido que se considera a vanguarda da classe trabalhadora, aprendida por Lenin no Catecismo de Netchaiev, o tirano soviético ensinou a seus discípulos que “os fins justificam os meios”. E, depois que a herança stalinista foi soterrada sob as ruínas do Muro de Berlim, restou aos neostalinistas do PT a lição de que o Estado existe para empregar os “bons companheiros” e isso basta para justificar a permanência no poder. Fosse qual fosse a motivação para o silêncio e, depois, para o pronunciamento do presidente - a tentativa de transferir o ônus político para os adversários no governo do Estado e na Prefeitura de São Paulo, o olho arroxeado pelo terçol ou a falta do que dizer -, ela foi cruel. Pois à Nação só resta agora rezar para evitar a próxima tragédia, de novo anunciada, uma vez mais inexorável. Afinal, os neostalinistas, além de obscenos, também são incompetentes e irresponsáveis. Há burocratas demais pondo em risco vidas de passageiros nos aviões do Brasil e nem o ministro da Defesa, Waldir Pires, assumiu sua óbvia responsabilidade pela gestão.

É cada um por si e nem a Deus cabe intervir - nem perdoar. Pois eles sabem o que fazem. Mas não como fazer.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde

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