Zínia Baeta, de São Paulo
Usada durante quase duas décadas como garantia para os negócios do empresário Wagner Canhedo - incluindo a compra da Vasp, em 1990 - a Fazenda Piratininga, um complexo agropecuário gigantesco que engloba uma área de 135 mil hectares no extremo norte do Estado de Goiás, deve em breve mudar de mãos. Pela primeira vez na história do país um grupo de trabalhadores de uma empresa em falência terá a possibilidade de receber boa parte dos créditos a que tem direito sem se submeter ao desgastante processo falimentar e ao rateio da massa falida entre outros credores - como bancos, fornecedores e o fisco. Graças a uma decisão da Justiça do Trabalho, cujo processo teve início há três anos, os ex-funcionários da Vasp conseguiram o bloqueio da fazenda de Canhedo, avaliada em R$ 421 milhões, para o pagamento de seus créditos. A decisão transitou em julgado, o que significa que não há mais como ser contestada.
Há dez dias, os sindicatos que representam esses trabalhadores conseguiram também no Judiciário o direito à posse da fazenda - instrumento juridicamente chamado de adjudicação. A possibilidade ainda está pendente do julgamento de um recurso da empresa Agropecuária Vale do Araguaia, proprietária da Fazenda e uma das empresas de Canhedo. Se confirmada a adjudicação, os sindicatos poderão administrar ou negociar diretamente a venda da propriedade, sempre fiscalizados pelo Ministério Público do Trabalho. Os valores levantados com a venda do imóvel rural serão distribuídos aos trabalhadores que já possuem decisões judiciais que reconhecem seus créditos. Além da fazenda Piratininga, outros bens de propriedade do grupo econômico da Vasp - formado por três empresas - já estão bloqueados para assegurar o pagamento dos trabalhadores, mas as decisões ainda não transitaram em julgado.
A presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, Graziela Baggio, afirma que, ao obter a carta de posse da fazenda, os sindicatos pretendem vender a propriedade. "Estamos procurando pessoas interessadas na compra, mas um leilão não está descartado", afirma. Antes, porém, será realizada uma auditoria para levantar o valor real da propriedade.
O que colaborou para evitar o conhecido dito popular "ganhou, mas não levou" e a dilapidação do patrimônio das empresas no caso Vasp foi uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho, pelo Sindicato Nacional dos Aeronautas e pelo Sindicato Estadual dos Aeroviários em 2005.
Buscava-se, com o processo, assegurar aos trabalhadores o pagamento dos salários atrasados e a solução de uma série de irregularidades em relação a obrigações trabalhistas cometidas pela Vasp, cujos valores que chegam hoje a quase R$ 1 bilhão. Também foi decisivo um acordo assinado por Wagner Canhedo perante a Justiça do Trabalho no mesmo ano, no qual ele se comprometia a pagar os salários atrasados dos trabalhadores e cumprir uma série de normas trabalhistas que não vinham sendo observadas.
A procuradora do Ministério Público do Trabalho de São Paulo, Viviann Rodriguez Mattos, representante do Ministério Público na ação, afirma que o empresário, ao assinar o acordo, reconheceu a responsabilidade solidária do grupo econômico pelo pagamento dos débitos trabalhistas existentes caso a Vasp não os quitasse. Com a medida, as outras empresas do grupo passaram a responder pelo passivo trabalhista da Vasp, assim como os bens pessoais dos sócios dos empreendimentos. "Se não fosse o acordo de 2005, a situação dos credores seria outra hoje, muito mais difícil. O acordo lá de trás "desblindou" o grupo econômico", afirma o advogado Carlos Duque Estrada Jr. que representa 550 trabalhadores da Vasp em 870 ações individuais. A própria procuradora afirma que até hoje não entende os motivos que levaram Canhedo a firmar o acordo. "Talvez ele imaginasse que conseguiria resolver o problema", diz.
A mesma ação civil pública que pediu o cumprimento de deveres trabalhistas também pediu a intervenção da Vasp, aceita pelo Judiciário e que perdurou até a aprovação da recuperação judicial da empresa, em junho de 2005. Com a recuperação, a intervenção foi extinta, mas a execução para a cobrança do pagamento dos trabalhadores continuou a correr na Justiça.
Segundo o juiz Wilson Ricardo Buquetti Pirotta, responsável por todas as ações em fase de execução da Vasp, há outros bens do grupo penhorados, como uma outra fazenda em Goiás ainda não foi avaliada. No caso da Fazenda Piratininga, ele afirma que, como a penhora ocorreu antes da recuperação judicial e também antes da falência, decretada nesta semana, ela não teria como entrar na discussão desses processos. O magistrado também lembra que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou neste ano que os bens das demais empresas do grupo econômico não poderiam fazer parte da recuperação judicial da Vasp. Com a medida, as execuções trabalhistas puderam continuar a correr contra o grupo.
Para ele, uma série de fatores colaborou para que o processo tenha chegado a uma fase que permitirá aos trabalhadores receberem boa parte de seus créditos fora da falência. Fato que, segundo o juiz, é inédito no país, considerando-se o número de processos e o volume de créditos da Vasp. Ele lista alguns mecanismos - como o uso de ação civil pública - usadas no tempo certo para evitar a diluição dos bens, como sua transferência para terceiros. Além disso, cita a pronta atuação do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo, que chegou a criar uma área específica para atender as execuções da Vasp e o próprio acordo assinando por Canhedo, que teria sido um fator a mais em um processo que já conta com farta documentação.
Procurado pelo Valor, o advogado que representa a Vasp na execução da fazenda Piratininga, Carlos Campanhã, preferiu não comentar o assunto.