O caos aéreo, de pura teimosia, sobrevive às ordens e à pose do ministro Jobim

ENSAIO: Roberto Pompeu de Toledo

O ministro dos Desastres Aéreos, Nelson Jobim, explicou assim, na semana passada, a questão da fiscalização das condições em que operam os aviões no país: "A fiscalização existe. A eficácia dessa fiscalização é que é o problema. O problema da existência da fiscalização é uma coisa, e outra coisa é a eficácia dessa fiscalização". Jobim freqüenta já há algum tempo a cena nacional, mas nunca esteve tão exposto. Com isso, vamos nos familiarizando com o seu jeitão seguro de dizer as coisas, temperado por um certo enfado, como se cansado de ter de explicar questões tão óbvias. O ministro, da altura de mais de 1,90 metro às proeminências do nariz e do abdome, tem o perfil do general De Gaulle. Recortem-se as silhuetas de um e de outro e elas se encaixarão como uma peça de quebra-cabeça em seu molde. Da semelhança física, o modelo gaullista expandiu-se para o espírito do ministro. Ele fala do alto, e não apenas pela vantagem que lhe dá a estatura. Tal qual as do francês, suas sentenças, mesmo que ditas na pista de um aeroporto, ou na floresta, com uma sucuri entre os braços, soam como vindas da cátedra, do púlpito, ou, caso se ache pouco, do Olimpo, do assento etéreo onde se acomoda.

Jobim é dado à propedêutica. A palavra é difícil, e pede esclarecimento. Propedêutica é o ensino que precede o ensino. É a definição das preliminares que devem balizar o estudo das questões. Assim, antes de mais nada, ao comentar o acidente aéreo do Campo de Marte, em São Paulo, no qual morreram oito pessoas, ele ensinou a diferença entre fiscalização e eficácia da fiscalização.

O propedeuta que nele habita já atacara antes. No dia 4 de outubro: Precisamos caminhar para uma percepção de segurança. Uma coisa é ter segurança, e outra é que as pessoas percebam isso. “Temos agora a segurança do sistema, mas não conseguimos fazer ainda com que as pessoas percebam isso”.

No dia 24 de outubro: "O problema aéreo é composto de três patamares: segurança, regularidade e pontualidade. Com a equação dos problemas de pistas, a questão da segurança está resolvida. Agora, a regularidade e a pontualidade dependem de uma série de medidas (...)".

O propedeuta impressiona. O interlocutor sente-se diminuto, diante de tão zeloso cultor da lógica e do rigor do pensamento. Só os fatos é que, teimosos, não se curvam. Oito dias depois de o ministro decretar que "a questão da segurança está resolvida", três helicópteros caíram em São Paulo. Mais três dias, e deu-se o desastre do Campo de Marte. Quanto à regularidade e à pontualidade – os outros "patamares" do problema –, a espera dos passageiros nos saguões dos aeroportos foi transferida para o interior dos aviões, estacionados longo tempo, antes de obter autorização de decolar. E as companhias aéreas encontraram uma deslavada forma de burlar a proibição de viagens superiores a 1.000 quilômetros a partir do Aeroporto de Congonhas: pegam um vôo, digamos, São Paulo–Salvador, e desdobram-no em dois, São Paulo–Rio e São Paulo–Salvador. Nas burlas deslavadas em grau máximo, os passageiros nem precisam descer do avião, na escala do Rio. Nas burlas de deslavagem média, mas de absurdo máximo, descem e minutos depois são convocados a subir no mesmo avião.

O ministro não se abala. Foi nesse quadro, com as coisas funcionando desse jeito, que, das alturas de seu etéreo assento, estabeleceu a distinção entre fiscalização e eficácia de fiscalização.

Grande Jobim! Não faria muita diferença se dissesse: "A fiscalização existe. O problema é que a fiscalização não fiscaliza". Por extensão, os galhofeiros poderiam repicar: "Ministro existe. O problema é que não administra". Ou: "Governo existe. O problema é que não governa". Como o ministro é forte na propedêutica, deu um nó na questão para interpor-lhe uma preliminar, ensinando que é preciso analisar bem, e com cuidado, antes de dizer que não há fiscalização.

Só numa coisa o ministro é mais forte do que na propedêutica: na exibição de autoridade. Memorável foi o brado do seu discurso de posse, desferido como golpe de bodurna na testa do dócil antecessor: "Aja ou saia, faça ou vá embora". Era o fantasma do general De Gaulle a revirar-se em suas entranhas. De Gaulle tresandava autoridade pelos poros da pele, pelas grossas narinas, até pelos fios do cabelo. Da aparência de autoridade, assim como da aparência de De Gaulle, Jobim está bem servido. O problema é fazer a autoridade traduzir-se em medidas práticas. Ou, posto de outra forma: "A autoridade existe. A eficácia dessa autoridade é que é o problema". O ministro é um especialista em disparar ordens pela imprensa. Na seqüência do desastre do Campo de Marte, intimou as companhias a prover a manutenção de seus aviões e arrematou: "Cobraremos isso com muita força". Grande Jobim! Pode até não conseguir transferir a dureza de suas ordens para o terreno da eficácia, infelizmente tão necessária.

Há um campeonato, porém, que lidera mais disparado do que o São Paulo no futebol: o da simulação de autoridade.

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