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Piloto em Brumandinho: 'É lindo minha sobrinha saber que pode ser bombeira se quiser' (VIDEO)

Karla Lessa, a primeira mulher comandante piloto de helicópteros de bombeiro do Brasil, fez os primeiros resgates aéreos na tragédia de Brumadinho


Heloísa Mendonça | El País

Eram 12h37 de uma sexta-feira calorenta de janeiro quando o Corpo de Bombeiros de Minas Gerais recebeu uma chamada de emergência pelo número 193. Do outro lado da linha, um morador de Brumadinho avisava sobre o rompimento de uma barragem da mina de Córrego do Feijão. Chorando muito, o homem explicava que tudo tinha sido levado e devastado pela lama. Foi o primeiro de muitos telefonemas que começaram a se multiplicar na central de atendimento da corporação no dia 25 de janeiro. Já em prontidão no hangar do Batalhão de Operações Aéreas do Corpo de Bombeiros, em Belo Horizonte, a 60 km do local da tragédia, a major Karla Lessa acionou rapidamente um grupo de cinco pessoas - entre eles um médico e uma enfermeira- e começou a preparar o helicóptero que pilotaria até a região.



Major Karla Lessa.
Major Karla Lessa | DOUGLAS MAGNO

Dezesseis minutos depois, Karla, a primeira mulher comandante piloto de helicópteros de bombeiro do Brasil, já sobrevoava a região do rompimento da barragem da mineradora Vale. A aeronave foi a primeira a chegar ao local. "Quando saímos para lá não tínhamos uma dimensão clara do que estava acontecendo. Mas, ao chegar, avistamos aquela lama toda, confirmamos o rompimento, vimos locomotivas e o trilho de trem retorcidos e a ponte que tinha sido levada. Um cenário de destruição", conta a major que, no primeiro momento, já pediu que todas as aeronaves disponíveis na capital fossem acionadas para apoiar a operação. Pela magnitude do estrago, não havia dúvidas que o trabalho a ser feito seria árduo e longo.

Inicialmente, o que se esperava durante a operação, segundo a comandante, era encontrar várias pessoas vivas pedindo ajuda pelo caminho, mas à medida que a equipe se deslocava e fazia um sobrevoo de varredura até o rio Paraopeba, a realidade se mostrou oposta. "Não conseguíamos enxergar ninguém na lama", conta. Foi apenas quando o helicóptero retornava do primeiro sobrevoo que Karla e a equipe avistaram pessoas gesticulando na borda de uma das regiões devastadas, próxima à pousada Nova Estância. "Voei bem baixo para tentar identificar o que estava acontecendo e vimos dois rapazes entrando na lama para tentar salvar uma mulher totalmente coberta de barro que estava se afogando".

Começava ali o primeiro resgate aéreo da tragédia de Brumadinho e um dos mais difíceis que a comandante já participou em seus 18 anos de carreira. Karla posicionou a aeronave a poucos centímetros do solo para aproximar dois socorristas de Talita de Souza, de 15 anos, a adolescente visivelmente machucada em meio à lama. Enquanto um dos bombeiros desceu se equilibrando em um tronco e tentava caminhar até ela, outro permanecia na parte externa do helicóptero e se esforçava para agarrar a jovem, que tinha uma lesão na perna. A ação dramática foi gravada pela emissora de televisão Record, autorizada a permanecer com um helicóptero próximo ao local. "Não tinha como pousar ali, tivemos que manter a aeronave parada no ar, pertinho do solo por cerca de 7 minutos, o que era muito tempo para aquelas condições. Havia inúmeros riscos, era um local cheio de obstáculos, com árvores e troncos, tinha o perigo de fazer uma aproximação e tocar algumas das pessoas desembarcadas e a própria dificuldade de estabilizar o helicóptero. A comunicação entre toda a equipe foi muito importante, tudo passava pela minha cabeça e esses complicadores precisavam ser gerenciados, qualquer erro podia tirar a vida de alguém", conta a major.

Além dos desafios técnicos, Karla precisou também ter sangue frio para controlar a própria emoção diante de tamanha tragédia, envolvendo tantas vidas. "O emocional não pode interferir na pilotagem, é preciso controle. No primeiro momento, a adrenalina é descarregada no sangue e dá uma agitada, mas mentalizei e concentrei que precisava ficar calma e transmitir confiança para os tripulantes que estavam fora do helicóptero, em uma situação extremamente perigosa, e que precisariam ainda de um esforço físico grande pra trazer a vítima para a aeronave", relembra.

Após deixar Talita em um ponto de resgate improvisado em um campo de futebol, a comandante partiu para resgatar outra vítima que, segundo as informações preliminares, estava politraumatizada, já fora da lama. Era Paloma da Cunha, de 22 anos, que sobreviveu após a avalanche de rejeitos invadir a sua casa e foi retirada da lama por um funcionário da Vale e, depois, foi deslocada do local pelo helicóptero pilotado por Karla.

"Naquele momento, tivemos que tomar uma decisão: ou tentávamos salvar mais pessoas, e não teríamos combustível suficiente para levar a Talita e a Paloma para o hospital em Belo Horizonte, ou teríamos que ir de imediato. E foi o que decidimos, porque elas corriam risco de morte", explica a major que no resto do dia já não conseguiu resgatar nenhum atingido pelo tsunami de lama. No dia 25 de janeiro, Karla trabalhou até o pôr do sol, horário limite em que ainda havia luminosidade para que a equipe pudesse ver os obstáculos. A major ficou empenhada na operação três dias seguidos antes da primeira folga.



"Mentalizei e concentrei que precisava ficar calma e transmitir confiança para os tripulantes que estavam fora do helicóptero, em uma situação extremamente perigosa"
MAJOR KARLA LESSA
"A comparação com a tragédia de Mariana naquele momento era inevitável", conta a piloto que, quando voltou a Belo Horizonte para levar as sobreviventes, teve que relatar a várias autoridades – entre elas o vice-governador e comandante geral do Corpo de Bombeiros —, qual era a situação do local da tragédia. "A descrição que dei com relação aos danos ambientais é que eu acreditava que seriam menores que os de Mariana, mas que em relação às vítimas, pelo que tinha visto e ouvido, acreditava que seria muito maior do que tinha acontecido na Samarco", conta Karla que também participou há três anos da operação após o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana. O desastre matou um total de 19 pessoas e deixou um rastro de destruição ao longo de mais de 600 quilômetros da Bacia do Rio Doce, até o litoral do Espírito Santo.

Karla não tem dúvidas que a missão em Brumadinho foi a mais difícil de toda sua carreira, mas ressalta que em nenhum momento deixou de manter a tranquilidade para desempenhar o trabalho para o qual foi treinada e preparada. "Tenho uma experiência grande em várias outras ocorrências que me dão tranquilidade para realizar salvamentos complexos como o de Brumadinho", diz.

A major, de 36 anos, revela que sua entrada no Corpo de Bombeiros, aos 18, foi ao acaso. "Não era um sonho meu, foi mais uma oportunidade. Estava numa fase de experimentação de ver o que seria da minha vida. Não tinha contato com a profissão, ninguém da minha família era militar", explica. Foi durante o último ano do ensino médio que a corporação a instigou, após um grupo de cadetes divulgar o Curso de Formação de Oficiais no colégio militar em que estudava. Resolveu tentar o curso e também prestou vestibular para engenharia química. "Passei em ambos, mas tranquei primeiro a faculdade. A medida que fui tendo as aulas e conhecendo o dia a dia dos bombeiros fui me apaixonando e desisti da engenharia química, anos depois me formaria em engenharia civil", diz.

O amor pela aviação aconteceu logo no início do curso quando teve uma aula de salvamento em altura. Karla até ali nunca tinha entrado dentro de um helicóptero ou avião. "Mas depois que você voa, pra quem gosta, é viciante. É outra visão de mundo. E, com o passar do tempo, constatei que também era uma área de atuação dos bombeiros que os oficiais tinham a oportunidade de passar mais tempo fazendo atendimento à população, algo que me motivou muito a ser piloto", conta.

"Bombeiro não é coisa de mulher"

A trajetória de Karla em um ambiente até hoje bastante masculinizado e machista não foi, entretanto, fácil. Ao contar que seria militar do Corpo de Bombeiros teve que escutar do pai o comentário de que "bombeiro não era coisa de mulher". E, de fato, não vinha sendo no Estado. Há apenas 25 anos o Corpo de Bombeiros de Minas abriu sua primeira turma feminina. "Já quando fui tentar o curso para ser piloto ouvi de um homem - hoje meu padrinho de casamento - que mulher não dava para aviação. Segundo ele, eu ficaria grávida, teria filho, e caso acontece algo com ele no meio de uma missão eu não pensaria duas vezes em abandonar a operação e voltar para o meu filho", conta ela que ainda não sabe se algum dia será mãe.

Atualmente, a major é uma das duas mulheres pilotas da corporação ao lado de 28 pilotos homens que completam o quadro da corporação. Em Minas Gerais, apenas 10% dos bombeiros são mulheres com base a uma lei estadual. "Falar que não existe machismo no Corpo de Bombeiros é mentira. Às vezes, fazem comentários que mostram certo machismo, mas não tenho problema em relação a isso no meu dia a dia para desempenhar as funções que preciso", pondera. Lamenta, no entanto, que as mulheres representem um efetivo tão pequeno da instituição. "O concurso público abre 30 vagas e 3 são para mulheres. Há uma diferenciação no ingresso por lei. Acho que isso deveria ser tratado de forma científica, se realmente é explicável essa diferenciação ", explica.

Na avaliação da major, apesar do machismo em várias profissões "masculinizadas", as mulheres vêm conquistando mais espaço nas diferentes carreiras e quebrando paradigmas. "O que falo para minhas três sobrinhas pequenas é que elas podem ser o que elas quiserem e que não existe profissões que são de homens e outras de mulheres. A menorzinha delas, de 5 anos, já fala que quer ser bombeira. Acho lindo ela saber que pode ter essa escolha se ela quiser. É preciso romper essa barreira cultural do 'eu não posso' e tentar sim o que você acha que te fará feliz", diz.

Não são raras as vezes que Karla é abordada por crianças quando pousa em diferentes cidades mineiras. "Muitas perguntam que é o piloto do helicóptero e quando digo que sou eu mesma a resposta gera uma surpresa", conta. Para a major esse tipo de abordagem é positiva já que ela tem a possibilidade de mostrar a todas as crianças que há possibilidades para todos, mulheres e homens, e de "abrir caminhos". Confiante das conquistas feministas, Karla acredita que o espaço conquistado pela mulher já é um caminho sem volta e, segunda ela, a tendência é que a presença feminina cresça muito ainda no Corpo de Bombeiros.





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