O executivo polêmico que fez de uma pequena aérea regional a maior companhia de baixo custo da Europa


Felix - Valor

"Por que cada avião precisa ter dois pilotos?", pergunta Michael O ' Leary, CEO da Ryanair, maior empresa aérea de baixo custo da Europa. Em sua sala na sede da companhia, marcada pela simplicidade, nos arredores do aeroporto de Dublin, O ' Leary propaga seu sermão, de tênis, jeans e camiseta.

"Sério, só se precisa de um piloto", prossegue. "Vamos tirar o segundo piloto. Deixemos a droga do computador pilotá-lo." Mas e se o piloto tiver um ataque cardíaco? Uma das integrantes da tripulação de cada voo da Ryanair seria treinada para aterrissar o avião. "Se o piloto tiver uma emergência, ele dá o aviso e a chama", diz O ' Leary.

De tempos em tempos, O ' Leary, de 49 anos, solta declarações assim - ideias provocadoras sobre como tornar as viagens mais baratas. É fácil menosprezar seus comentários como desvarios calculados de um caçador de manchetes, mas fazê-lo seria perder a chance de vislumbrar a psique do setor aéreo, normalmente escondida atrás de uma falange de rostos sorridentes. Em momentos como esse - ou alguns posteriores, como quando O ' Leary explica como gostaria de ver banheiros pagos e áreas com passageiros em pé em todos seus voos - ele dá voz aos instintos mais primitivos de sobrevivência do setor. Ele é o "id" da aviação.

Se os tempos fossem exuberantes, as empresas rivais poderiam se dar ao luxo de ignorá-lo. Nos últimos anos, com grande parte do setor em busca de saídas para sobreviver, a visão subversiva de O ' Leary parece uma alternativa cada vez mais viável ao status quo, ameaçado pela obsolescência, esgotamento e fusões. Ele diz o que os outros pensam e, com frequência, fazem.

Hoje qualquer voo comercial pode deixar você com a impressão de que as empresas o consideram como gado. A diferença é que O ' Leary pode chamar você de gado e explicar como planeja trinchá-lo para o jantar. Seus 17 anos no comando da Ryanair vem sendo um grande banquete. Numa era em que a maioria das empresas aéreas pulou de uma crise para outra - desde os ataques de 11 de setembro de 2001 até a erupção do vulcão na Islândia e a recessão mundial -, a Ryanair passou de uma pequena aérea regional para uma potência com 7 mil funcionários, 1,1 mil rotas para 155 aeroportos em 26 países. Em julho, tornou-se a primeira aérea na Europa a transportar mais de 7 milhões de passageiros em um mês.

A companhia tem valor de mercado de US$ 7,2 bilhões, bem acima da rival EasyJet (US$ 2,3 bilhões) e da irlandesa de modelo tradicional Aer Lingus (US$ 612 milhões), mas ainda abaixo de Southwest (US$ 8,29 bilhões) e Delta (US$ 8,22 bilhões). Nos últimos dez anos, em que o prejuízo combinado das empresas aéreas somou quase US$ 50 bilhões, a Ryanair exibiu lucro líquido em nove anos.

Nada disso garante que as fantasias mais desenfreadas de O ' Leary se tornarão realidade, apenas que suas ideias influenciarão as viagens por anos. Por trás de seu sucesso como CEO há uma reavaliação radical da natureza do passageiro. No centro da filosofia de O ' Leary está a ideia de que os passageiros de voos comerciais não são criaturas delicadas cuja fidelidade depende de travesseiros, cobertores e chá grátis. Na verdade, são feras resistentes - avarentos na hora de comprar as passagens, perdulários no ar - dispostos a enfrentar desconfortos e indignidades, desde que sejam levados a seus destinos, assim como suas malas. A questão que paira não é se o "jeito O ' Leary" será adotado pelas empresas aéreas, mas até que ponto e com que rapidez seu paradigma vai se disseminar.

Em julho de 2002, na Inglaterra, passageiros que embarcavam em um voo da Ryanair com destino a Dublin fora avisados pelo piloto que havia falta de pessoal encarregado de embarcar a bagagem no avião. Haveria um grande atraso, disse o piloto, a menos que passageiros se dispusessem a fazer o serviço. Pouco depois, um punhado de passageiros estava na pista para ajudar a subir as malas.

Algum dia, O ' Leary gostaria de ver isso em todos os voos da Ryanair. "Os aeroportos apenas são lugares ridiculamente complicados porque temos essa operação absolutamente inútil de pegar as bagagens em sua partida, simplesmente para termos de devolver em sua chegada", afirma. "Vamos nos livrar de toda essa porcaria. Você leva sua bagagem com você. Você a carrega. Você a sobe."

O'Leary acredita que a forma como os aeroportos são projetados para lidar com as bagagens é um vestígio de uma era ultrapassada, do período entreguerras quando os únicos que viajavam eram pessoas como os Roosevelt. "Bem, sinto muito. É 2010. Carregue sua própria bagagem." O ' Leary vangloria-se de a Ryanair ter sido a primeira empresa aérea a cobrar pela bagagem. "De uma empresa aérea irlandesa nanica, agora todo o setor no mundo vê o que fazemos."

O ' Leary tem um sonho: que algum dia todos os passageiros voem de graça pela Ryanair e que toda a receita da empresa venha de serviços relacionados, como tarifas pela bagagem, vendas durante o voo e comissões por seguros, hotéis e aluguel de carros vendidos pelo site da companhia. Atualmente, essas vendas representam apenas 20% da receita da empresa. Entre os inúmeros obstáculos que O ' Leary acredita estarem entre ele e seu sonho estão os sindicatos (que puxam os custos para cima), políticos (defensores de aéreas estatais) e autoridades reguladoras, que o impedem de colocar em vigor medidas como realizar voos de curta distância com um piloto só.

"Se você não aborda as viagens aéreas a partir de um ponto de vista radical, então você tem a mesma mentalidade de todos os outros imbecis nesse setor", diz O ' Leary.

Em troca das tarifas mais baratas, diz, os passageiros aceitarão quase qualquer coisa. Na Ryanair, isso pode incluir altas tarifas pela bagagem; esforços de vendas incansáveis durante os voos que incluem desde cigarros sem fumaça até jogos de loteria tipo raspadinha; comida cara e ruim; assentos apertados; e voos para aeroportos secundários que, às vezes, ficam a horas de distância da cidade real de destino. (Uma passagem de US$ 34 de Dublin a Frankfurt, por exemplo, na verdade o levará ao aeroporto de Hahn, na Alemanha, que fica a quase duas horas de ônibus de Frankfurt).

O ' Leary também gostaria de livrar-se de dois dos três banheiros em todos os voos de curtadistâncias, o que  permitiria à Ryanair colocar mais passageiros e cobrar ainda menos pelas passagens.

Ele cobraria € 1 pelo uso do banheiro remanescente. "De muitas maneiras, viajar é prazeroso e enriquecedor", diz O ' Leary, recostando-se em sua cadeira. "Mas o processo físico de ir do ponto A ao ponto B não deveria ser prazeroso nem enriquecedor. Deveria ser rápido, eficiente, acessível e seguro."

O ' Leary diz orgulhosamente que a sede da empresa, com sóbrios 1,4 mil m2 , é "provavelmente a menor entre todas as empresas aéreas do mundo". Embora a ideia de enfeitar demais seu ambiente de trabalho lhe seja repugnante, O ' Leary gostaria de renovar todos os 250 aviões Boeing 737 da empresa.

Neste verão, ele anunciou que planejava substituir as 10 últimas fileiras de assentos das aeronaves por 15 fileiras de "assentos de pé" - encostos verticais com cintos na altura dos ombros e apoios para as mãos -, que lhe permitiriam comprimir mais 30 passageiros em cada avião.

A ideia de assentos verticais vem sendo um assunto espinhoso na aviação desde 2006, quando o "The New York Times" publicou uma polêmica reportagem sobre como os fabricantes de aviões avaliavam usá-los. Após a publicação, executivos da Airbus minimizaram seu suposto interesse. "Nossos passageiros e clientes querem mais e mais conforto", disse uma porta-voz da Airbus às CNN na ocasião.

Posteriormente, o "The New York Times" publicou uma longa correção e nos anos seguintes os passageiros continuaram fazendo o oposto do que a Airbus previa, abrindo mão cada vez mais dos confortos em favor das empresas aéreas que se esforçavam para ampliar suas receitas secundárias.

O ' Leary agora diz que após ver os projetos, decidiu que os assentos verticais não gerariam espaço suficiente. Em vez disso, tem uma ideia melhor - trocar as dez últimas fileiras por uma cabine para passageiros de pé, com vários corrimãos, assim como no metrô, mas sem bancos. O aumento na capacidade, afirma, reduziria o preço das passagens entre 20% e 25%. "Nunca, em um voo operado pela Ryanair, todos ficariam de pé. Sempre haveria a opção de pagar por um assento", diz. "O argumento contrário é que se houver uma colisão, as pessoas ficarão feridas. Mas se houver uma colisão, as pessoas sentadas também ficarão feridas."

O ' Leary minimiza a ameaça que a turbulência representaria para passageiros em pé. "Sim, alguém poderia ficar ferido", diz. "Não digo isso levianamente. Mas faríamos exatamente o mesmo que em qualquer outro caso: 'Senhores e senhoras vamos ter alguma ligeira turbulência. Segurem-se firme'."

"Ele insulta a dignidade dos passageiros a cada vez que abre a boca", diz Kate Hanni, fundadora da FlyersRight.org, um grupo sem fins lucrativos de defesa dos passageiros. Hanni diz que em maio, incitada pelos comentários de O ' Leary sobre os banheiros pagos, levantou a questão durante reunião no Departamento de Transporte dos EUA. Representantes do órgão disseram ter compromissos verbais de todos os grandes fabricantes de aviões nos EUA de que nunca iriam ter banheiros pagos, conta Hanni.

"Iríamos atrás de medidas contra as empresas aéreas por prática desleal, caso impusessem uma tarifa por usar os banheiros a bordo", confirma Bill Mosley, porta-voz do Departamento de Transporte.

Hannis diz que pressionará autoridades por garantias similares contra os assentos verticais.

Quanto aos voos com só um piloto, Patrick Smith, piloto veterano, considera que a ideia vai "além do absurdo". Smith diz que O ' Leary está alimentando a concepção errada de que os aviões voam mais ou menos sozinhos. "Mesmo em operações de rotina, é importante ter uma segunda pessoa lá", afirma. "O que nós não queremos é que ideias malucas e insensatas da Ryanair pouco a pouco contaminem os EUA", acrescenta Hanni.

O ' Leary nasceu em 1961, segundo mais velho de seis irmãos. Embora sua família tivesse boa situação financeira, ele nunca viajara de avião a parte alguma. Até meados da década de 80, quando surgiu a Ryanair, a Aer Lingus detivera um quase monopólio sobre voos com origem em Dublin e os preços eram caros. Como a maioria das famílias de classe média alta à época, quando os O ' Leary viajavam para o exterior, iam em ferry-boats. Ele não se recorda da primeira vez em que entrou num avião. "Evidentemente, não foi uma experiência tão fantástica."

Após diplomar-se em administração e negócios, O ' Leary trabalhou como contador numa empresa de grande porte. Saiu para fundar uma rede de bancas de jornais e, em 1987, conseguiu um emprego como assistente financeiro de Tony Ryan, um empresário que tinha feito fortuna com leasing de aviões e que recentemente havia fundado uma companhia aérea baseada em Dublin. (Ryan morreu em 2007). O ' Leary concordou em trabalhar sem salário fixo, mas com um percentual substancial das receitas da Ryanair, caso as rasas perspectivas da companhia melhorassem. Esse pacto fez dele um dos homens mais ricos da Irlanda. Ele possui hoje 55 milhões de ações da Ryanair - em 1º de setembro, a cotação era US$ 5,05. Nos primeiros anos de sua existência, porém, a Ryanair viveu dificuldades.

Diversas vezes, O ' Leary recomendou que ela fosse fechada.

Até 1994, quando se tornou CEO, O ' Leary era bastante convencional. Evitava os holofotes.

Vestia-se com blazers. Após assumir o cargo, notou que a discrição era prejudicial aos negócios. Ele viu como outros executivos extravagantes economizavam dinheiro gerando muita publicidade gratuita, como Richard Branson e sua Virgin Atlantic. Decidiu então encarnar o papel de um despojado cidadão comum algo antipático que vende ao cidadão comum uma experiência de voo barata, despojada e um pouco desagradável.

Ele começou a aparecer para trabalhar em jeans. Na sede da Ryanair, cultivou uma reputação de indigência, proibindo as folhas de rosto nos faxes e pedindo aos funcionários que comprassem suas próprias canetas.

O ' Leary esforçou-se bastante para tornar-se conhecido como o homem mais desagradável da Irlanda. Criou situações ofensivas, por exemplo, vestindo-se de papa ao lançar uma rota para Roma. Em entrevistas e em programas de rádio, ele prosseguiu em insultos contra figuras públicas.

Em seu tempo livre, O ' Leary cria cavalos de corrida e gado em sua propriedade nos arredores de Dublin, onde vive com a mulher e dois filhos. É um profundo estudioso de genética animal e temperamento. Ele nunca confundiria, digamos, um Beefmaster com Belgian Blue. Mas O ' Leary diz que, por décadas, as companhias aéreas misturaram seus tipos de passageiros - tratando viajantes de classe econômica como se fossem magnatas empresariais, com um nível de cortesia que não receberiam em qualquer outro lugar e que, na verdade, nem esperariam.

A Ryanair tornou-se infame por seu serviço ao cliente, que alguns pretendem caracterizar como minimalista e outros descreveram como infernal. Reclamações devem ser enviadas por fax, não por email.

Passageiros tiveram de pagar surpreendentes taxas extras para usar coisas como cadeiras de rodas. Jornais, entre eles o "The Guardian" criaram competições entre os leitores dedicadas a descrever histórias de horror vividas na Ryanair.

Apesar de tudo, mais e mais pessoas estão voando com a Ryanair, o que, no fim das contas, pode ser a validação definitiva da avaliação, por O ' Leary, do que os viajantes realmente querem. "Um dos grandes mantras no mundo dos MBAs diz que o cliente sempre tem razão", diz ele. "O cliente geralmente está errado. A única vez em que você ouve um cliente se manifestando, geralmente é quando estão reclamando porque querem quebrar as nossas regras. Por que não posso obter um reembolso de meu bilhete não reembolsável? Sem essa."

De volta a seu escritório, O ' Leary estava ficando cada vez mais impaciente. O id da indústria da aviação não é fã de autoanálise. No passado, ele sugeriu que algum dia deixaria a empresa, embora diga não ter planos de vida depois da Ryanair. Cargos políticos estão fora de questão. "Eu sou inelegível", diz.

O ' Leary considera perguntas sobre seu legado igualmente irritantes. "Eu não estou fazendo o que faço para me orgulhar de como servi à humanidade", diz ele. Um ponto de orgulho, porém, ele admitiu. "Nós finalmente desmistificamos a ideia de que viajar de avião era um tipo de experiência única", diz. "Não é. É apenas uma maneira de ir do ponto A para o B."

(Tradução de Sabino Ahumada e Sérgio Blum)

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