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Apagão Aéreo: um tiro pela culatra

No início do governo Lula, Itamaraty fez manobra de última hora e retirou candidatura brasileira à direção da agência da ONU para aviação civil. Agora, país corre risco de perder espaço na organização

Claudio Dantas Sequeira
Da equipe do Correio Braziliense

Uma articulação diplomática realizada às pressas pelo governo Lula, no início do primeiro mandato, pode ter comprometido a capacidade de defesa dos interesses do Brasil na Organização de Aviação Civil Internacional (Oaci). Em fevereiro de 2003, o chanceler Celso Amorim enviou ao presidente do Conselho Executivo da Oaci, Assad Kotaite, um ofício, obtido com exclusividade pelo Correio, comunicando a retirada da candidatura do brigadeiro Renato Cláudio Costa Pereira à reeleição como secretário-geral da agência. A vitória era dada como certa.

Atropelando protocolos, a manobra causou estranhamento, indignação e, claro, custou a posição de liderança do Brasil na autoridade máxima do setor aeronáutico. Eleito em 1997 e reeleito três anos depois, o militar tinha apoio da maioria absoluta do conselho para um terceiro mandato. Apesar disso, o Itamaraty optou por apoiar o argelino Taïeb Chérif.

Para justificar a decisão, Amorim alegou falta de consenso entre os países da América Latina e África. “Depois de manter consultas com um número de membros do conselho, em particular com países latino-americanos e africanos, o Brasil achou que a retirada da candidatura Costa Pereira facilitaria o processo eleitoral e contribuiria para o consenso”, escreveu (veja fac-simile).

A suposta “falta de consenso”, na verdade, se restringia à própria Argélia, cuja candidatura foi alçada no último momento por um quarteto poderoso: Estados Unidos, Canadá, França e Reino Unido. Eles invocaram um “acordo de cavalheiros” firmado três anos antes entre a Comissão Latino-Americana de Aviação Civil (Clac) e sua correspondente africana (Cafac): a Cafac apoiaria a reeleição de Costa Pereira, em 2000, em troca do respaldo da Clac a um africano, em 2003.

Funcionários da Oaci confirmaram à reportagem que o acordo tinha pré-condições, que foram descumpridas pelos africanos. “A Cafac deveria apresentar seu candidato entre o final de 2001 e início de 2002, para que fosse avaliado. Nunca iríamos apoiar qualquer nome, pois o cargo de secretário-geral é técnico, não meramente político”, afirmou o brigadeiro à reportagem (leia entrevista).

Votação

Em maio de 2002, os representantes africanos no conselho da Oaci (Argélia, Camarões, Egito, Etiópia, Ilhas Maurício, Nigéria e Senegal) reconheceram que não havia consenso para a apresentação de um candidato próprio, e recomendaram a reeleição de Costa Pereira. Em 3 de novembro de 2002, o comitê executivo da Clac decidiu propor o apoio unânime ao brasileiro. Dez dias depois, surgiu a candidatura do argelino Chérif, criando um impasse. Compreendendo as circunstâncias, o Itamaraty então se manteve a favor da reeleição do brasileiro.

“Gostaria de informar que o governo brasileiro vem por meio desta apresentar a candidatura do senhor Renato Cláudio Costa Pereira para a reeleição”, escreveu o então chanceler Celso Lafer, em carta ao presidente do conselho da Oaci, à qual o Correio teve acesso. Dois meses mais tarde, a 10 dias da eleição, Amorim tornou sem efeito a decisão de Lafer. “Foi um golpe pelas costas”, acusa o brigadeiro.

Apenas quatro dias depois a embaixada do Brasil em Washington notificou ao Departamento de Estado a retirada da candidatura, atribuindo a decisão ao próprio brigadeiro. “O ministro de Relações Exteriores em Brasília pediu à embaixada que notificasse o Departamento de Estado que o secretário-geral da Oaci, Renato Costa Pereira, retirou sua candidatura”, informa uma funcionária do governo americano em e-mail interno, obtido pela reportagem.

A assessoria do Itamaraty garantiu que a decisão “não prejudicou” os interesses do país. “O Itamaraty honrou esse compromisso.” O ministério disse que “se houve descumprimento de determinadas tecnicidades, isso não justifica o rompimento do que foi acordado”. E emendou que “o brigadeiro Renato só conseguiu ser reeleito em 2000 em função do acordo de cavalheiros”.

Iniciativa pioneira

Embora faça parte hoje do sistema das Nações Unidas, a Organização de Aviação Civil Internacional (Oaci) nasceu um ano antes da ONU, em 1944, em convenção realizada em Chicago (EUA). Além dos países-membros, a estrutura da Oaci inclui representações das companhias aéreas, aeroportos e pilotos.

Entrevista - Renato Cláudio Costa Pereira
“Poderíamos ter evitado o apagão”

O brigadeiro da reserva Renato Cláudio Costa Pereira exerceu por dois mandatos consecutivos — entre 1997 e 2003 —, o cargo de secretário-geral da Organização de Aviação Civil Internacional (Oaci). Foi o único brasileiro a ocupar a posição nos mais de 60 anos de existência dessa agência das Nações Unidas. Sua gestão foi direcionada ao desenvolvimento dos sistemas de controle do espaço aéreo nos países em desenvolvimento. Costa Pereira também é reconhecido por ter guiado a Oaci em um dos períodos mais conturbados da história da aviação mundial, depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos. Hoje, aos 70 anos, vive com a família em Varginha (MG) e ainda atua como consultor.

Como o senhor avalia a decisão do Itamaraty de retirar sua candidatura à reeleição, em 2003?

Foi ilegal e absurda. Primeiro, porque a candidatura havia sido acertada com os países latino-americanos no ano anterior. Eu tinha o apoio do então chanceler Celso Lafer. A reeleição era dada como certa, até que, 10 dias antes da eleição, o ministro Celso Amorim, que havia assumido em janeiro, decidiu retirar minha candidatura. O governo não podia retirá-la, porque era uma candidatura regional, e não de um país. E o pior é que ninguém falou comigo. Não me consultaram, não me notificaram e nunca me pediram nada. Decidiram por mim, não me comunicaram da decisão e a anunciaram sem que houvesse tempo hábil para qualquer negociação. Comunicaram ao Departamento de Estado americano que a decisão de sair da disputa era minha. Isso é antiético. Para evitar um vexame diplomático, oficializei a retirada. Mas os países que me apoiavam ficaram indignados com a manobra obscura e abrupta do Itamaraty.

O governo diz que havia um “acordo de cavalheiros” para apoiar o candidato africano…

Eles não levaram em conta que o acordo foi descumprido pelos africanos. Eles deveriam apresentar seu candidato entre o final de 2001 e o início de 2002, para que fosse avaliado. Nunca iríamos apoiar qualquer nome, pois o cargo de secretário-geral é técnico, não meramente político.

O que o Brasil perdeu ao abdicar da sua reeleição?

Perdeu a liderança no processo decisório da política sobre aviação civil internacional. Caiu em descrédito pela forma como fez isso, e abriu caminho para a crise que se instalou no país desde o ano passado.

Qual a relação entre o apagão aéreo e sua reeleição?

Simples: eu saberia dos problemas antes. Poderíamos ter evitado o apagão aéreo. Em 2002, a FAA (agência de aviação civil dos EUA), depois de uma inspeção, estava em vias de classificar o Brasil na segunda categoria do seu sistema. Eu interrompi esse processo e coloquei a Oaci para fazer uma auditoria no Brasil. Identificamos as deficiências e elas foram corrigidas no prazo de um ano. Isso impediu que o FAA fosse adiante no processo. Se houvesse outra auditoria nos últimos anos, poderíamos ter resolvido o problema da falta de controladores, ou qualquer carência técnica, antes que isso se transformasse numa crise.

A Aeronáutica teme que o Brasil caia do Grupo 1 no conselho da Oaci…

O Brasil sempre esteve no grupo 1, desde a criação da Oaci. Mas, depois dessa performance muito pobre, corre sério risco de cair, e ter que disputar uma vaga no segundo ou no terceiro grupo. É triste. Há seis anos, nosso país foi o primeiro a ser reeleito, e por unanimidade. O conselho da Oaci é como um parlamento da aviação civil. O Brasil pode acabar no “baixo clero”.

E quais as conseqüências desse rebaixamento?

As piores possíveis. Sem assento no Grupo 1, também não poderemos presidir ou co-presidir o conselho ou qualquer comissão temática, como a de navegação aérea. Também não teremos direito a voto, o que deixa o país a reboque das decisões, mesmo as lesivas ao interesse nacional. Se o conselho decidir, por exemplo, condenar um motor que a Embraer está usando no projeto de um avião, ela poderá amargar um prejuízo de milhares ou milhões de dólares. O descrédito do sistema de controle do espaço aéreo brasileiro eleva o custo das operações no Brasil, o valor dos seguros. A Embraer, que é a quarta fabricante mundial, vai perder capacidade de concorrência. Os Estados-membros da Oaci podem até proibir que empresas brasileiras voem para seu território, ou exigir inspeções próprias em nossa estrutura. E lá se vai nossa soberania…

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